domingo, 9 de maio de 2010

Coralina lição



Louve-se a encantada procissão goiana purificada. Que Brasil profundo sonhou a luz nova lentamente revelada pela musa longínqua camonianamente forjada nos versos de Cora Coralina? Louve-se esta nova Bahia que aqui floresce.

Os grotões forjam o desterro. A negra brasileira ergue-se em tons novos de sofrimentos. Negros sonham através do ritmo. A mãe liberta seu corpo acorrentado. A mulher encobre a verdade com beleza.

O rosário é lento. Camões quase perdeu seus manuscritos de Os Lusíadas em um naufrágio na costa asiática, segundo aquilo que se narra de sua vida. Pouca fama Camões recebeu em vida, para quem se tornou poeta maior da língua portuguesa. A força camoniana elevou o espírito lusitano, conferindo-lhe grandeza épica.

As penas de uma vida negam o medo. A negra forma da cultura brasileira erige um monumento à dominação pela música. Cora Coralina cantou que vivia dentro dela uma “cabocla velha”, “acocorada ao pé do borralho”. Toscamente vivia esta cabocla. Negras sexualmente faziam bem ao senhor de escravos.

Residindo há apenas dois anos Goiás, vindos do Rio Grande do Sul, tivemos a oportunidade de conhecer a Casa Velha da Ponte, onde nasceu e viveu Cora, bem pouco tempo atrás. A lembrança da poeta eternizará a necessidade materna de parir e alimentar o mundo. Parece o fogo original de algo novo. O medo está onde revela-se o segredo.















Poemas são organicamente compostos. O mito de Cora Coralina compõe-se da dor experimentada ao longo de sua vida. Havia, diferente de Drummond, mais do que uma pedra no meio do caminho. O mito coralino situa-se na poderosa e enigmática rua antiga do Brasil. Aí, a pedra põe o corpo a secretar remédios para a cura de males coletivos.

O novo local de cortejar o mito de um povo é a internet. Porém, com adoração musical, a rua antiga projeta sombras que viram sóis dourando a realidade. Quando Drummond, cerca de cinco anos de Cora morrer, a abençoou com um elogio público, escreveu para ela um cortejar de pássaros, levando-a ao reconhecimento nacional.

Muito nos enternecemos ao adentrar a Casa Velha da Ponte. As bases de um novo mito roçam a ternura daqueles que ali conhecem sua vida e sua obra, intimamente relacionadas. Como o naufrágio que poderia ter levado ao fundo do mar os manuscritos de Camões, a novela coralina de uma vida literária escondida na pequena Cidade de Goiás escondeu Cora da notoriedade até praticamente o final de sua vida. O começo do reinado musical de um mito ritualiza-se através da dor. A cabocla feiticeira que viveu dentro de Cora soube atravessar o século da ciência e da tecnologia corporificada em vários de seus versos (“eu sou a mulher mais antiga do mundo”).

Com atenção redobrada, a música que sonha a humanização do mundo pode acordar o coração puro revelado em Goiás como a essência do Brasil. Ouro e monturo se amontoam no destino brasileiro: Cora profeticamente escutou esta música. Louve-se a fonte ornadora a partir da qual a bondade recobre as feridas mais profundas. Louve-se a brandura onde se poderia ver podridão. A dor do mundo era a pedra que Cora Coralina encontrava nas ruas e becos de Goiás. Suas mãos de doceira, “jamais ociosas”, ornaram a dura rotina da mulher brasileira. A musa a mando da doçura cantava a forma íntima da ritualidade que se expressa há séculos no Brasil e que o Carnaval tão bem sintetiza: o corpo nu feminino, ao mesmo tempo revelado e escondido, representa a verdade e a mentira, a maneira artística de aprender com a vida.


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