quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

A boa casa

Senhor,
Mãos de ferro

Eu
Vi

Quebradas
Pelo

Querido
Abraço.




Poema (trecho) e foto: Marcus Minuzzi
Pintura: Sílvia Goulart

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

A amorosa educação que Cora Coralina e Paulo Freire ensinam


O povo que brinca amplia a lembrança do paraíso. Bom para o país é possuirmos uma identidade associada a ritos que corporificam a sabedoria do brincar como o carnaval e o futebol. Enquanto professor, sinto sempre a necessidade de ritualizar em sala de aula esta mesma sabedoria.

O rito repercute a liberdade como força arquetípica. A noção de arquétipo, quando formulada pelo psicanalista suíço Carl Gustav Jung, refere-se a um nível mais elementar da psique coletiva humana que, em resposta ao instinto de sobrevivência, produz imagens de grande poder simbólico, capazes de determinar o rumo de culturas inteiras.

O poeta que sofre dessa influência libertadora – a influência do sonho da liberdade enquanto arquétipo - paradoxalmente sofre com sua própria falta de liberdade.

Lendo recentemente “Cora Coralina – o mito de Aninha”, do professor Saturnino Pesquero Ramón, pensei em tomar de empréstimo alguns aspectos de sua obra para refletir sobre como o Brasil revelou para o mundo o pensamento educacional de Paulo Freire.






A promessa de libertação encarnada na proposta pedagógica de Freire tragicamente foi abortada pela ditadura militar implantada no Brasil em 31 de março de 1964. O método de alfabetização de adultos criado pelo educador havia poucos meses começara a ser adotado como política pública através do Plano Nacional de Alfabetização, do governo João Goulart.

Nele, a fórmula de uma docência que respeitava os saberes do povo e que com eles queria aprender ritualizava uma profundo significado humanizador.

A fonte mítica perde-se no tempo, mas permanece fornecendo o texto a partir do qual se encena a realidade, como diria o antropólogo Roberto DaMatta. A própria realidade então pode ser lida como um processo ritualístico. A força que o mito possui faz a poesia profetizar o futuro com todas as consequências que disso podem ser resultantes.

A poesia de Cora Coralina arquetipicamente orienta-se por uma arte de amar sem limites. Ramón lembra, com base em pensadores como Heidegger e Jung, que “o poeta, sinônimo do ser criativo em geral, é um simples veículo da obra, que tem (a obra) autonomia e vida própria”.

Como conseqüência disso, a poesia manifesta-se como “uma força da natureza”, “que urge e se impõe (...) sem se incomodar com o bem-estar pessoal do ser humano que é o veículo da criativiadade”.

Como diz Ramón, a “gesta coralina”, ou seja, sua arte de viver a fim de que se concretizasse seu mito (o mito da grande mãe universal), arquetipifica a realidade fantasiando-a em favor da amorosidade de que tanto Paulo Freire falou.









A arte que Cora Coralina legou ao mundo foi mais do que seus versos. Foi a memória amorosa de longa ritualização do sofrimento feminino.

A renúncia materna é um tema constante no teatro representado pela sociedade. Mães alimentam o arquétipo original dionisíaco - Dionísio, a divindade grega do prazer, da sensualidade e da embriaguez - amando o prazer sublimado pela dolorosa missão da renúncia existencial.

Os quase 50 anos que Cora esperou para retomar seu projeto literário, desde o início de seu casamento até sua viuvez, dramatizaram sua emocionante entrega à memória da materna condição da espera.

A dionisíaca amorosidade ardentemente plantou uma árvore no coração do Cerrado: a vida inteira de Cora e sua forma poética, forte por sua lírica brasilidade de aceitar a pedra que alimenta o medo da morte.

O apaixonante segredo que o mangue nos conta arde, por sua vez, na boniteza da amorosidade freireana. O mangue, como repositório do que apodrece, enaltece o brasileiro tenaz.






Na geografia da cidade do Recife, de onde Paulo Freire partiu para o mundo, sua importância é poeticamente reveladora: como os monturos fumegantes da Vila Boa de Cora, o mangue produz o amor pelo artístico destino do povo. O caranguejo, animal do mangue, alimenta-se de restos e viceja, como as boninas que cobrem os monturos da Vila Boa.

Ler na vida da poeta e do educador tais significados artisticamente revela o manso marulhar do mito brasileiro.

A leitura mítica que pode-se fazer da realidade instaura um modo de vivenciar o tempo chamado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss de totêmico. Nele, a linearidade anula-se em favor da circularidade.

A lembrança que articula o presente ao passado amorosamente promove uma aliança entre a arcada mítica de um povo e seu ponto atual de vida no fluxo do tempo. O medo da diferença regula a vontade que o ser humano possui de viver com outros seres humanos. Logos e mito alimentam-se mutuamente.

Paulo Freire põe ênfase no amor da prática docente – um amor pelo conhecimento do outro. A freireana apologia à educação amorosa alimenta-se do arco mítico que ritualiza na realidade vivida o tempo eterno dos valores universais.

“É nesta experiência do ritual coletivo que tomamos consciência de uma outra realidade tão fundamental quanto o indivíduo: a realidade da sociedade em que vivemos com suas fronteiras, limites, regras e, por causa disso mesmo, com a capacidade de nos unir uns com os outros na vivência coletiva dos ideais comuns”, ensina Roberto Da Matta.

A amorosidade freireana, a partir deste entendimento, orienta o fazer pedagógico a partir de uma verdade totêmica, em que o medo da diferença alia-se à necessidade de união.

A fonte que fornece a morte à vida e a vida à morte epicamente nos constrói. A revolução educacional proposta por Paulo Freire avizinha-se com a reconfiguração da ordem mundial que coloca o Brasil como país fortalecido e erguendo-se em meio à descrença nos valores (essencialmente lúdicos) de seu povo.








O fio que tece a narrativa de um país ardorosamente significando a porta de entrada no paraíso terrestre arranja a arte e a poesia. É a força do mito que fornece a magia necessária à amorosidade coralina e freireana.

Ramón recupera o conto “Os meninos verdes”, de Cora Coralina, para amorosamente aprofundar o estudo sobre o mito do amor materno universal vivido pela poeta. O conto narra um determinado “acontecido”, que Cora assevera ser verdade: sete anõezinhos verdes são encontrados ao pé de duas “plantas estranhas” que haviam brotado espontaneamente no quintal da casa velha da ponte.

Ramón relaciona os anõezinhos (“seres vivos – com todas as formas de crianças em miniatura”) com os filhos de Cora, que também foram sete (seis biológicos e um adotado). Foram, os filhos e filhas da poeta, o destino forçando a ritualização do mito.

Os meninos verdes provêm do fundo da terra, com seus prantos por proteção. É a alma da terra que chora, em seu “repouso nos universos imaginados pelo devaneio”, como diz o filósofo Gaston Bachelard.










A fealdade do povo brasileiro provém de sua pobreza e ignorância. O medo de amar torna esse povo forte em sua aspiração pela beleza. A amorosidade materna que permitiu o simbolismo do conto de Cora Coralina é a mesma da pedagogia de Paulo Freire.

A força totêmica de uma grande mãe confunde-se com o Brasil. A bondade alimenta-se de uma artística missão: amar o povo a partir da união com a natureza põe-nos em contato com o reino poético das formas a descobrir.


Nossa pedagogia vacilante, que tanto reluta para assumir o legado freireano, precisa também retirar da terra seus meninos verdes e fazê-los ressignificar a educação.




A mãe doce de oração frondosa


Quando brinca de
Ser o sábio
Que ama o amor,
Voa e, inquieto, sonha
Com o reinado.
Entre a pedagogia de
Ideias
E novas teorias
Revolucionárias
E curadoras,
Cria seu teto
Luminoso e flutuante.
Há um desejo
Incontido de arte
E saber em seu
Homem formador.
Há um sincrético
Modo de educar.
Há um Brasil
Em sonho
De ginga e carnaval.






Artigo: Marcus Minuzzi
Poema e pinturas: Sílvia Goulart
Fotos: Marcus Minuzzi, Tomás Goulart Minuzzi e Google

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