quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Em meio ao brejo




Em meio ao
Brejo, alcancei
A luz pequena
Da cor.
Ilustrações de
Flores agrestes,
Borboletas, libélulas,
Grilos e gafanhotos.
Bicho-pau.
Todos habitam
O céu terrestre.
Uma ecologia
Perfeita entre
Deuses e orixás
Da floresta.
A sábia
Passarinha que
Recolhe seus
Filhotes.
Seus bicos abertos
À mama.
Alimento, suor
Materno.
Espíritos protetores
E duendes encantados.
O advento é harmonioso
Como o rosa,
E o carvão.
Como a ópera
De meninos do nordeste.
Como Renata Rosa
E sua rabeca.
Ó estampas
Que agradam
Meu coração.
Os versos de Cora,
O cerrado,
Baru,
Pequi,
Pimenta de cheiro,
Bode,
Dedo-de-moça.
A terra seca e vermelha
Acalma meu
Rastro de índia.
Pinto, eu mesma,
Minha alma.
Que todos os
Dias sejam
Serenos,
Como o escorregar
De uma gota,
Como abrir
E fechar os olhos.
Como curvar-se
Diante de Deus.

Poema e desenho: Sílvia Goulart
Foto: Marcus Minuzzi

domingo, 25 de setembro de 2011

Pomba anímica




A divinização cabocla
Arquetipifica
A pomba
Anímica
Em teu cabelo.
Há reinos
E amarelas
Ordens
Que
Alimentam
De paz
O
Erro.

Ó Divino
Tempo
Brasileiro
Alongado
Pela
Demorada
Cópula dos
Deuses.


Poema e foto: Marcus Minuzzi
Pintura: Sílvia Goulart

domingo, 18 de setembro de 2011

Ora pro nobis



1.
Ora pro nobis.
Conta pequena,
Ora por nós.
Pequenas meninas
Do silêncio,
Da sutileza,
Da hora das virgens,
Pequenina onda
Que nasce em Roma
E cresce entre as
Pedras da serra santa.
A luz do candeeiro
“Alumeia” nosso
Ventre habitado
Por flores cheirosas
Cheias de espinhos.
Alivia as dores
De nossos pés
Secos, machucados,
Cheios de fendas.
A miragem
Coberta
Pelo véu de seda
Esconde a janela
Da dama
Cor de bronze.
Ora pro nobis.
Benze quebranto,
Quebra feitiço,
Unge teu pranto,
Que somos
Continhas miúdas
A reluzir no oceano.
Água que verte,
Que corre em direção
Ao rio dos prazeres.
Acorda, Maria.
Teu santo cresceu.
Teu ventre de ouro
Abriu a comporta
Do mar.
Conchas, estrelas,
Cavalos-marinhos.
Escuta a manhã,
Banha-nos com teu
Silêncio.
Boa alvorada,
Te encontro
Na fonte.
Meu pássaro
Guerreiro é
Teu sábio retirante.
Abençoa meu nome.
Ora pro nobis.

Sílvia Goulart


2.
Há meu hímen no ouvido,
Que custosamente vai se rompendo.
A força peniana que o rompe
Advém de Maria.
Ergo o véu de meu enfeitado
Rei poeta.
Sua pintura do paraíso é
Brasileira.
O amor negro que amansa
O rito de roubar belezas.
Meu erê bento ouve o denso
Acordar do menino aborígene
Homero.

Marcus Minuzzi


Pintura: Sílvia Goulart


sábado, 17 de setembro de 2011

A amplidão do ser


A lonjura é a amplidão do ser. O demorado amor que poderosamente alimenta-nos de ilusões torna a distância uma conquista. A forma bruta pela qual nos tornamos brasileiros artisticamente se funda na beleza dos sertões repletos de arte arquetípica e que profetiza o amor da volta à Deusa.


Texto e foto: Marcus Minuzzi
Pintura: Sílvia Goulart

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

O amor pelo Brasil




A composição rítmica, melódica e poética que mais lembra o Brasil é possivelmente “Asa Branca”, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. O lamento sertanejo aí ritualizado artisticamente amplia a visão de nosso mito fundador, onde a nação é visualizada como paraíso terrestre. “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste. / Criança! Jamais verás país nenhum como este. / Olha que céu, que mar, que floresta!”. Nesses versos de Olavo Bilac, a “criança” representa certamente o futuro. O artista desenha as feições do país. Falarei aqui mais como artista do que como intelectual e professor que estuda a cultura brasileira.

A dionisíaca folia que é o carnaval artisticamente fantasia nossa desigualdade social, até bem pouco tempo atrás geradora de grande incredulidade sobre o futuro do país. Lendo o clássico “O povo brasileiro”, da Darcy Ribeiro, pude perceber recentemente que a povoação do país deu-se em um processo, que ainda hoje parece não ter se esgotado, de exploração de um povo aculturado, ou seja, expropriado de uma cultura vinculada de modo fundamental às matrizes que o constituíram - branca, negra ou indígena. O povo brasileiro surge então de uma espécie de ninguendade, uma espécie de face sem nitidez na definição de seus contornos identitários. O dionisismo presente na comemoração do carnaval artisticamente prefigura uma nação onde o formoso trópico, com sua união de mitos, produz lentamente a razão brasileira.

O Brasil alimenta-se dionisiacamente de ouros escondidos em casas em que ardem homens e mulheres. A escravização do país por culturas estrangeiras – atualmente, pela cultura norte-americana – alimenta-se do medo da superação das diferenças étnicas no interior da própria cultura brasileira. A homenagem do artista Olavo Bilac à exuberante natureza brasileira contrasta com a tristeza épica nos versos de “Asa Branca”, onde o sertão nordestino provoca a fuga em busca de outras terras. A ferocidade do sertão aproxima-se, no entanto, à visão de que a natureza exuberante também é hostil.

O profético emblema, traçado pela beato Antônio Conselheiro, líder espiritual que provocou a Guerra de Canudos (1896-1897), de que o sertão vai virar mar, e o mar, virar sertão, torna-se o mito que incorpora a amplitude da alma brasileira. A origem do mito do sertão, conforme a filósofa Marilena Chauí, remonta à visão de Anchieta sobre a divisão da natureza do país entre a “costa litorânea” e a “mata bravia” (o sertão). Nas décadas de 30 e 40 do século XX, a marcha para o oeste, no governo do Getúlio Vargas, imbui-se de uma leitura nacionalista para dar voz ao mesmo mito. A forte orientação que o desbravamento do Cerrado assumiu, no sentido de aí localizar a nova capital, Brasília, completa o ciclo de alimentar a nação com a exploração de desconhecido e sua incorporação ao mundo conhecido.





A mitologia brasileira se constrói lentamente. O medo de amar faz o arco dionisíaco ritualizar o novo. A errática musa inspira sonhos proféticos. Cora Coralina viveu praticamente um século inteiro entre os brasileiros em quase absoluto anonimato. Ao final da vida, aos 95 anos de idade, após ser “descoberta” por Carlos Drummond de Andrade, figurava como exemplo de vida e poesia. A força geradora que produziu seus versos arquetipicamente funcionou como a ondulação mais intensa da profética esperança que alimenta o Brasil. Forçosamente, o mito artisticamente arde intenso onde há sofrimento e dor. A pedra constitui-se em uma das principais figuras poéticas de Cora Coralina. Seu hino materno, entoado como forma ritualística de encarnar o mito da grande mãe universal, fecunda a poderosa lembrança da rua antiga do Brasil. O bondoso olhar de Cora sobre o beco, outra figura determinante em sua poética, reinventa o amor à pátria, na medida em que embeleza a gente herdeira de nossa pobreza ancestral (“No beco da Vila Rica tem / velhos monturos, / coletivos, consolidados, / onde crescem boninas perfurmadas”).

O grito de “independência ou morte” que a nação orgulhosamente precisa repetir de tempos em tempos (como na campanha das “Diretas já”, ou no impeachment de Collor) atualiza-se com a arte que provoca visões daquilo que realmente somos. A ritualidade dionisíaca do carnaval reforça o mito do Brasil como paraíso terrestre, lugar onde a humanidade se reencontra consigo mesma. “Quanto mais alma ande no amplo informe”, como escreveu Fernando Pessoa, mais ela terá dormido nos braços do “fim do mundo”. Quanto mais o Brasil amar a si mesmo, mais orientará o segredo, a ser distribuído ao mundo, como exemplo, do tempo vivido na terra com o máximo de prazer.

O amor que Milton Nascimento sente pelo Brasil artisticamente permite amar o povo brasileiro. “Tenha fé no nosso povo que ele resiste”, canta Milton, em uma de suas composições do final da década de 70 (chamada “Credo”), com o país ainda sob ditadura militar. O mito depende da desracionalização para corporificar-se, assentado sobre a esperança. A morte anoitece com a ordinária razão. Acreditar no Brasil, acima de tudo, é ler a realidade com a razão do poético fogo do coração, a exemplo do que fez Cora Coralina.





Texto e fotos:
Marcus Minuzzi
Pinturas: Sílvia Goulart

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