terça-feira, 30 de outubro de 2012

A lembrança do novo homem de Gabriela


Fartos medos agrestes perdem sua força através do processo de domesticação do masculino. A elegia a um novo homem renovou-se com a regravação da novela Gabriela, inspirada na profética obra de Jorge Amado. O mito de uma nação cabocla, onde a favela ordena o perdão ao poder masculino atroz, por meio do alegre e sensual encantamento feminino, pode se restabelecer. A nova microssérie da Globo, Suburbia, que aproveita a mesma faixa de horário de Gabriela, a partir desta quinta-feira, alimenta-se do mesmo mito. A feiura de nossa miséria social é uma imposição fálica: o eterno coronelismo regionalista brasileiro ama recriar-se e mesmo passar despercebido.

O otimismo deve vir do medo do arquétipo feminino, tão complexo quanto o processo de consolidação da democracia no Brasil. Aquilo que o feminino oferece enquanto conhecimento nupcial amazônico: uma promessa belamente indígena de harmonização entre mulher e homem, civilização e natureza, ecologia e produção capitalista. O fim do mundo ritualiza-se com a persistência endemoniada do homem perigosamente próximo ao tesouro amazônico. A profecia de Antônio Conselheiro permanece e o mar virará sertão.

Nada no Brasil é óbvio e se torna cada vez mais ausente a regência de grandes maestros a controlar a força homérica que aqui se expressa, no sentido de uma recriação da própria humanidade (como foi o Renascimento, na Europa). A herança musical de Villa-Lobos foi assumida por Tom Jobim. Glauber Rocha soube inventar a si mesmo, assim como Luiz Gonzaga. O feminino arquetipicamente alimenta o sonho de ser brasileiro através do forte reinado de tais gênios.

A errática democratização do país produziu a ditadura militar, intrinsecamente vinculada ao período de ouro da música brasileira. Segundo Nietzsche, a linguagem musical é a única capaz de expressar a dolorosa verdade do princípio de tudo, o "um primordial". O Brasil corrupto, cansado de si mesmo, é fruto da mesma obscura força masculina. No último final de semana, em que se reuniram forças da música brasileira em Goiás (como Milton Nascimento, Criolo, Velha Guarda da Portela), no festival Canto da Primavera, renovou-se certamente a esperança de que o mito da mãe universal, aqui plantado por Cora Coralina, represente a aceitação do perdão à mulher e o início de uma nova presença musical cabocla, articulando indefinidamente, como viu Antônio Conselheiro, mar e sertão, e fortalecendo a visão nietzscheana e coralina de que a poesia é o único antídoto contra a desilusão frente a violência do ser humano e dos deuses que nos perpetuam enquanto espécie.

Marcus Minuzzi

Um comentário:

  1. Não sei nem comentar, Seu Minuzzi, rsrs. Mas toda essa integridade amorosa com e sobre o todo é magnífica. Sempre justificado seu título de doutor e eternamente louvável seu ato humano de amar e dizer.

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