domingo, 20 de fevereiro de 2011

Droga e São Momentinho



Por certo, escrevi a crônica da droga que é o meu amado São Momentinho.

O São Momentinho é o momento certo, agudo e esperançoso. O único lugar em que podemos efetivamente ser felizes.

O São Momentinho é o pequeniníssimo. E esse momento é o da palavra, o grande momento da palavra certa.

Invariavelmente, esta palavra se dirige a uma Grande Mãe e, por consequência, às mulheres de um modo geral.

De modo mais certeiro, àquela mulher que devotamos nosso amor de menino.

A palavra é a droga da humanidade, o grande repositório da salvação. Droga, portanto, no sentido claro: de rejeição ao medo de estar salvo.

O ópio não é uma droga, é uma porcaria. Já futebol é uma droga certa. Só se vai uma vez por semana ao estádio, como numa missa, oferecer seu próprio corpo: estou aqui Pai, e não tenho medo dos terríveis tiros que me desferem o trem mundano do dia-a-dia.



A roda da bola, no estádio, nos descarrega de um ciclo infernal. Paradoxalmente, contraria a própria palavra, mas de maneira amuada, sertanêjica, esperando o momento da hora certa.

É só porque gosta de futebol que o povo lê jornal e, aos poucos, vai se entregando ao gosto de se estragar, ao vício de morrer sublime - n'A Palavra.

Droga é não ter medo da rosa da vida e da morte. Droga é ser Jesus Cristo. Droga é Cora Coralina.

Há um quê de Rosa & Sertão neste mito: a felicidade milagrosa de um momento. João Guimarães Rosa, por certo, fendia a palavra. A fazia luzir. Não fosse o português uma língua tão obscura, e já teríamos fundado um novo planeta - o que, por certo, vem fazendo muita falta.

Droga é a falta de pedra na vida, muita pedra. A coisa tão certa, de casamento, com o capeta. Droga é a brotação da seiva mágica. A mãe-dona-benta.

Rosa porfiou o regionalismo de Minas, casado com uma mãe aquífera rica em mananciais. Ela é uma bruta, essa mãe. Por isso, Rosa bateu cabeça e nos abençoou com Grande Sertão : Veredas.

A besta leva medo embora, medo da angústia de Carlos (Drummond). Droga é retirar dos olhos uma venda.

Porém, muito mais que isso, é retirar os próprios olhos, qual Édipo, depois de reconhecer, em si, o medo do demônio. É isso que acaba com a literatura má, e redeposita nossos votos na festa, na água santa de uma boa festa.

Droga é alimentar o cotidiano com a minúcia de pequenos prazeres entre a pedreira representada pela falta de encanto na relação em que sempre o homem endemonhou a mulher, endemonhando o sertão mesmo.



Ó santa pedra. A pedra é aliança. A pedra é amor. Em poesia, o ato de "pedrar" é o ato de descaroçar o alimento. Como diz Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, a ama de leite encarregava-se de amolecer o alimento pro menino.

Há uma preguiça gostosa na fala do sertanejo goiano e mineiro que deveria encantar a todos.

Amas de leite, segundo Gilberto Freyre, amoleciam o falar, adocicando-o com a voz de bebê - note-se o bico que se faz com a boca quando usamos o "bê": a antiga ema canta abrindo o mito.

Ema, animal do Cerrado. Ela enamora-se onde há encanto com a língua. Pode a moça entregar-se.

A fala ovariana estimula o gosto por poemas em parceria com musas guerreiras. O muso anhanguera pode entregar-se ao seio.

Gosto da sonoridade amuada desse moço anhanguera. Ele ali, aliando em si pedra e poesia. Soma os muitos medos edipianos, do mênstruo ao incesto.

É amoroso o modo como a massa onírica antiga risca a elegia ao bom bandeirante.

Droga, repito, é Cora Coralina, que is not dead, como já sei que andaram dizendo por aí (que "Cora Coralina is dead", pichado, num muro). A morte não existe. Cora Coralina, sim.

E assim o digo com a ponta de meu dedo, que fuçou as entranhas de todos os nossos medos, até o mais antigo, o medo de ser um homem grosso, e de legar isso aos nossos filhos.





Texto e fotos:
Marcus Minuzzi
Pinturas: Sílvia Goulart
Moça da foto: Juliana Goulart Boesche

O beijo de moça ritualizará o povo.

2 comentários:

  1. Poesia? ... em tudo.
    Conto? ... é.
    Trabalho científico? ...quanta citação!
    Tese? ... inegável. Mesmo.

    Por que ser um só? O rótulo caído anima valorizar o MOMENTO, São Momentinho, da leitura e da próxima e interna esperança calcada.
    Quantas vezes terei que ler e ver para atentar a tudo que me parece aparecer ai.

    Parabéns pela manutenção e atualização contínua do blog d'A Negra!

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  2. Que São Momentinho eternize momentos de encantamento como estes que visito seu blog.

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